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As mudanças ocorridas no mar têm sido um processo contínuo. Por este motivo, enxergá-las como algo que ocorreu nos últimos dez, vinte ou mesmo cem anos é algo incorreto. A maioria das mudanças nos equipamentos melhorou a forma como o trabalho é realizado e, exceto pelo sentimento de que os manuais para os equipamentos eletrônicos mais complicados poderiam ser mais simples, enfrentá-las tem sido algo natural. Mas o mar não mudou e nem a forma como o utilizamos para a navegação.
Independentemente de como um passadiço da era espacial pode ser, uma onda ainda pode tirá-lo de ação. Se os conveses não estão preparados para o mar e a carga não está corretamente peada, um desastre é iminente. Em outras palavras, enquanto aprendemos a lidar com o presente e nos preparamos para o futuro, não devemos esquecer as lições do passado.

NAVEGAÇÃO
A evolução da navegação eletrônica (e-navigation) no passadiço ocorreu nos últimos anos e podemos afirmar que, de uma forma geral, houve um impacto favorável na capacidade de navegarmos e na segurança. Atualmente, menos navios encalham e, quando isto ocorre, é geralmente por erro humano. A obtenção da posição do navio é cada vez mais precisa e o Oficial de Serviço no Quarto de Navegação pode produzi-la sem o estresse da época da navegação astronômica.
Por ter se tornado tão fácil localizar o navio, surge um novo problema. Ao invés de se caminhar pelo passadiço esperando o sol nascer ou se por, apertamos simplesmente um botão ou olhamos uma tela “mágica”. Os dias em que eram feitos os cruzamentos de três marcações a cada 15 minutos e sua numeração e plotagem na carta náutica são agora substituídos pela observação do ícone do navio se movendo na carta náutica eletrônica. Isto não significa que os Oficiais no passadiço podem relaxar e desfrutar de muito tempo livre, pois a pilha de papel continua a crescer e ela precisa ser resolvida no próprio passadiço.
Sabemos que muitos pensam que nunca deveríamos ter começado a fazer uso dos recursos eletrônicos e que o treinamento e os métodos tradicionais de navegação deveriam continuar. Entretanto, como o tempo avança e permanece a pressão do trabalho no passadiço, o treinamento e o uso dos métodos tradicionais de navegação estão sendo reduzidos e o número de Comandantes que insistem no seu uso também diminui, os sextantes ficarão apenas pegando poeira nas suas caixas ou se transformarão em adornos.
O maior perigo disto tudo é o de que eventualmente, se permitirmos a interrupção deste treinamento básico, os novos Praticantes e Oficiais não possuirão os fundamentos nos quais poderão basear seus aprendizados e qualidades futuros. Além disso, é claro, não devemos esquecer as situações em que eles terão que enfrentar uma falha de alimentação ou algo parecido. Diversos navios ainda não estão equipados com passadiços com sistemas integrados (e-Bridge ou IBS) e a maioria possui apenas o mínimo exigido pela Convenção SOLAS.

NÁUTICA
O conhecimento básico da profissão do Oficial da Marinha Mercante não é a navegação; é a náutica, palavra que atualmente não tem sido empregada de forma correta. Nas funções definidas ou nas áreas do conhecimento para a obtenção da certificação de acordo com a Convenção STCW não existe a função de náutico. Assim, onde e quando os Oficiais modernos serão formados em “náutica”? Certamente não é durante o curso realizado nos centros de treinamento antes de irem para o mar. Isto faz com que os navios sejam o local natural para este aprendizado, durante o período total de um ano antes do Praticante se tornar um Oficial. Dentro do período embarcado, os regulamentos exigem que seis meses sejam empregados no passadiço, deixando os seis meses restantes para o aprendizado dos princípios da boa náutica que serão fundamentais para sua carreira a bordo.
Existem alguns Armadores que reconhecem o problema e tentam preencher a lacuna indicando Oficiais Instrutores a bordo dos navios denominados como Navios de Treinamento. Infelizmente, tais Armadores são em número muito reduzido e com poucos navios para este propósito. Além disso, fatores tais como o tipo de navio, de carga, as acomodações disponíveis, a estadia nos portos, a rotina de bordo, as tripulações reduzidas e o próprio preparo dos Oficiais Instrutores favorecem ao treinamento não adequado.

TREINAMENTO
Os novos Oficiais estão hoje mais conscientes da situação do que aqueles Oficiais que receberam o treinamento tradicional ou eles estão mais focados em equipamentos eletrônicos? Não deve haver conflito entre a tradição e a era eletrônica se aceitarmos que os conceitos básicos da boa náutica devem ser transmitidos antes do embarque. Entretanto, um grande problema hoje é onde e como os alunos irão aprender estes conhecimentos náuticos. Se os Oficiais do navio não tiverem tempo para ensiná-los, e em muitos navios os alunos embarcam por seis meses, tempo que não é suficiente para este treinamento, devemos então encontrar outra maneira.
Na Índia, por exemplo, ainda se acredita no treinamento básico, e é por isso que eles exigem dois anos de treinamento no mar para os Praticantes mantendo excelentes escolas para o ensino em terra. Isto provavelmente explica a qualidade dos seus Praticantes. Outros países continuam a ensinar também desta maneira, alguns utilizando Navios-Escola a Vela.
Quando voltamos nossos olhos para o Brasil, encontramos boas referências apenas em um passado muito distante. Possuímos poucos Armadores provendo treinamento a bordo de sua frota tentando cobrir a falta dos fundamentos náuticos. Isto não é apenas aparência, é uma realidade. Apenas alguns Oficiais que podem ser utilizados nos escritórios em terra recebem treinamento específico para a nova função. Este profissional normalmente não retorna para o mar. Deve ser nosso o interesse em prover uma solução para o problema ou do contrário, como poderemos manter a reputação da nossa Marinha Mercante, com ensino de alta qualidade e atualizado para os Oficiais que irão conduzir a frota mercante brasileira?

Se aceitarmos que o tipo de navio para o qual os alunos são enviados para o treinamento embarcado não pode ser garantido, ou que o tipo de treinamento que eles irão receber será consistente, devemos então considerar o estabelecimento de um esquema de treinamento básico adequadamente organizado antes que eles sejam contratados pelos Armadores.

Este treinamento básico deverá ser concebido de forma a prover ao aluno uma familiarização mínima com o mar e os conceitos básicos da formação náutica e da disciplina, bem como a consciência formadora em liderança. Os Alunos continuam desejando permanecer na Marinha Mercante durante os períodos atuais de embarque? A melhor maneira de se obter isso é por meio de um Navio-Escola. Um dos grandes riscos existentes nos navios em tráfego é o convívio com Oficiais sem capacidade para o ensino ou sem a paciência necessária para atender a tantas perguntas. Como dito anteriormente, as tripulações reduzidas já sofrem do estresse natural do pouco tempo disponível a bordo para outros afazeres que possam aliviar a tensão, tais como piscina, ginástica, leitura, filmes, etc. Por que este Oficial deve abrir mão do seu período de descanso para ajudar na formação de um futuro companheiro de profissão? Este Praticante pode ainda ser visto como um futuro concorrente.

Se não considerarmos isto como uma boa solução, devemos então nos perguntar: porque outros países estão conseguindo treinar Praticantes com boa qualidade desta maneira? É possível que a falha em considerarmos este tipo de treinamento como o mais apropriado tem mais a ver com o custo do que com a necessidade.
Um Navio-Escola pode também proporcionar muita economia. Um navio deste tipo poderá ser usado para que os alunos conheçam a profissão antes de serem investidos milhões de reais na sua formação. Os centros de treinamento não devem ser usados como trampolins para concursos que exijam diploma de curso superior.

Tal iniciativa poderá ser muito benéfica para a posição do Brasil como uma nação marítima e para o preparo dos Praticantes para a carreira da Marinha Mercante. Se a indústria como um todo não pode ficar dependendo de fornecer o treinamento para o futuro Oficial, então seguramente está em tempo para que os custos com treinamento sejam distribuídos entre todas as companhias de navegação com base nos números de Oficiais a serem empregados. Além do mais, todas as outras indústrias periféricas que se beneficiam diretamente do estoque de oficiais treinados tais como as praticagens, portos, companhias de pesquisa e consultoria, sociedades classificadoras, além de outras não citadas, devem participar do rateio dos custos da formação. Se tal extensão de custos puder ser implementada, não haverá nenhum problema em se obter os fundos para tal navio.

MECÂNICA, ELETRICIDADE, ELETRÔNICA E AUTOMAÇÃO
Assim como a navegação é vital para a formação do Oficial de Convés, com sua importância sendo reduzida, o conhecimento de mecânica, eletricidade e eletrônica também é negligenciado na formação do Oficial de Máquinas, que tem sido treinado apenas como operador de sistemas, com conhecimento cada vez maior como usuário de informática e cada vez menor em motores, ajustes mecânicos, usinagem, instrumentação, solda e serviços elétricos e eletrônicos. Vemos muitas vezes o navio retornar ao porto com deficiências sérias de segurança na navegação porque o Oficial de Máquinas não foi capaz de executar um reparo de emergência em um motor a diesel, gerador ou sistema hidráulico do leme. Na área de eletrônica o problema também é sério, porque sabemos da existência de muitos Chefes-de-Máquinas completamente reféns dos Eletricistas de bordo, que por sua vez também podem não ter o conhecimento adequado de eletrônica, automação e instrumentação.
É preciso que o Oficial de Máquinas tenha os conhecimentos teóricos e práticos na condução de todos os sistemas de bordo e seja capaz de identificar e, pelo menos tentar com chances de sucesso, executar um reparo no mar, sabendo operar e reparar as máquinas, motores e ferramentas disponíveis com bastante habilidade. O Oficial de Máquinas deve ser também capaz de supervisionar os reparos durante uma parada para manutenção no porto, garantindo que os mesmos sejam de boa qualidade e mantenham a segurança da navegação.
Outro ponto importante que vem sendo continuamente negligenciado na formação do Oficial de Náutica é o conhecimento prático, “in loco” das atividades de máquinas, eletricidade e eletrônica. É preciso que o Oficial de Náutica seja capaz de avaliar, pelo menos de forma genérica, se as atividades de máquinas estão sendo desenvolvidas de forma correta, por dois motivos importantes. O primeiro é que o sentido de trabalho em grupo (team work) só é entendido quando todos sabem do valor do trabalho de cada um, e o segundo é que em última análise, o Comandante é o responsável por tudo o que acontece na embarcação, esteja ou não sobre seu controle direto.

CONCLUSÃO
Somente agora, quando problemas tais como o de se tripular os navios existentes e os em construção ou planejados, a fadiga, a falta de algumas qualidades e o pouco tempo disponível começam a se tornar mais evidentes, começamos a olhar em volta e perguntarmos o que aconteceu de errado e por que. Se formos buscar culpados, estaremos perdendo mais tempo. Qualquer sistema que dependa de fundos para o treinamento de pessoas e que não tenha um bom planejamento e acompanhamento da indústria diretamente afeita estará sujeito a problemas.

Quando os alunos se deparam com alguns dos problemas vividos pela Marinha Mercante, onde há muito os navios não mais ostentam a bandeira brasileira na popa como sinônimo de excelência, começam a perceber que fizeram a escolha da carreira errada. Precisamos encontrar uma solução. Existem muitas entidades envolvidas, bem como empresas e pessoas motivadas pelo único interesse em ajudar a Marinha Mercante Brasileira. Entre todos eles, independentemente da experiência que cada um possua, poderá ser encontrada uma solução para o problema fundamental do treinamento náutico.
Existem muitos poucos tradicionalistas no mar, especialmente aqueles em funções de chefia, que tiveram que se adaptar continuamente às mudanças nos últimos 10 ou 20 anos. Por outro lado, existem também os que se encontram em terra, recusando aceitar as mudanças ocorridas no mar e seus efeitos. Os Armadores desejam operar navios sem ter que prover qualquer treinamento. O Oficial Mercante tem mostrado sua capacidade em se adaptar a cada mudança que ocorre procurando manter o padrão que ainda resta. No mar, qualquer um com bom senso deseja qualquer coisa que possa ajudar a tornar as tarefas mais fáceis e seguras e a “e-navigation”, com certeza, propicia isso. Infelizmente, a e-NÁUTICA não foi ainda inventada, tendo esta habilidade que ser ensinada!
Pode-se ainda debater o porquê de boa parte dos iatistas conhecer melhor a boa náutica do que muitos dos Oficiais Mercantes. Todos os que navegam são (ou deveriam ser) marinheiros. O conhecimento de marinharia deve ser estendido a todos os profissionais de bordo.
É também um fator negativo o fato de que muitas das qualidades descem a escada de portaló quando as pessoas se aposentam ou abandonam a profissão, e não voltam mais com as que a sobem.

Este Projeto não pretende alterar ou exigir a alteração do currículo das Escolas de Formação de Oficiais da Marinha Mercante – EFOMM’s. Seu objetivo principal é o de complementar o ensino teórico dos Centros de Instrução da Marinha do Brasil.